segunda-feira, 22 de julho de 2013

Errou um sinal, a ponte caiu

A frase do título pode não fazer muito sentido para as pessoas em geral, mas gera arrepios nos alunos (ou ex-alunos) de engenharia. Para quem não conhece, vou fazer uma ilustração.

Imagine que você é um engenheiro civil experiente, responsável técnico de uma empreiteira contratada pela prefeitura de uma cidade para construir uma ponte. Você e sua equipe passam meses realizando cálculos e planejando a execução do processo de construção.

Durante o início das obras tudo ocorre bem, de acordo com o plano e as melhores práticas da engenharia aplicada por você. Acontece que, por um momento, você testemunha uma cena trágica: para colocar uma viga na posição prevista, o guindaste solta o produto de aço de algumas toneladas sobre as pilastras, que começam a ruir. Tudo desmorona a seus olhos.

Ainda bem que isso aconteceu antes das pessoas utilizarem a ponte, ninguém se feriu. Mas por que isso aconteceu? Você fez tudo correto, de acordo com o que estava no livro. Então eis que surge um analista e diz que o estagiário fez uma conta errada, trocou um sinal, e a partir daí todos os outros cálculos estavam errados... a ponte caiu.

Poderia uma ponte cair por causa de uma distração simples?

Essa é a história que os professores sempre contam. No meu caso foi na disciplina de Resistência dos Materiais. Mas não é apenas nessa disciplina (e no curso de eng. civil), onde o exemplo é literal, que a analogia funciona. Essa afirmação é usada como justificativa pelos professores mais tradicionalistas para corrigir "binariamente" (ou acertou completamente, ou errou completamente) os exercícios das provas dos pobres coitados dos alunos.

Assim surgem casos de provas em que o aluno fez duas folhas de almaço de contas e contas, mas por pequenos enganos errou todas as respostas finais. Corrigindo rígida e binariamente, o professor confere apenas as respostas finais, ignorando todo o raciocínio do aluno, e lhe dá nota 0.

É claro que são raros os casos de professores que cumprem esse roteiro à risca. No meu caso, que fiz engenharia entre os anos 2004 e 2009, a maior parte dos professores tinha um pouco disso. Aqueles que eram encarnações do estereótipo eram as lendas da faculdade...

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Eu vou agora fazer alguns comentários sobre essa prática. Considerar que o aluno deve seguir o procedimento de forma precisa sem nenhum erro, mostra que o professor...
  • quer que os alunos sejam engenheiros-máquina, cuja função principal seja realizar rotinas de cálculo e projeto de forma minuciosa, como um computador.
  • considera que seu papel é o de treinador dos alunos, que devem aprender a realizar um procedimento se segui-lo sempre que necessário (e nada mais importa).
  • não se importa com o aprendizado "parcial" dos alunos, se importa apenas com o aprendizado sistemático do procedimento e com a obtenção do resultado final esperado. O aprendizado parcial de um procedimento poderia ser considerado, permitindo que o aluno revisasse seus resultados. E não é só o aprendizado de procedimentos que faz um engenheiro...
  • ignora o fato da informática ser hoje em dia um grande aliado dos engenheiros (e da população em geral), realizando os procedimentos exaustivos de maneira muito mais sistemática que as pessoas. Na verdade, o professor pode até pensar nisso, mas considera que mesmo assim os alunos devem saber executar os procedimentos tão bem quanto se não houvesse computadores.
  • desconsidera que o tempo de uma prova não é o mesmo tempo de um projeto. Em um projeto os cálculos e resultados podem ser revisados diversas vezes, e mesmo um engenheiro muito capaz pode se distrair e errar uma conta. Além disso, para mim, errar uma conta não quer dizer
    que o engenheiro é ruim, mas errar a interpretação de um resultado sim.
Conseguem pensar em algo mais?

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Vamos tentar entender o que pode passar na cabeça dos professores ao fazer isso. Um engenheiro deve realizar todos os procedimentos de cálculo/projeto de forma tão sistemática e precisa que não pode errar nada. Se o aluno de engenharia comete qualquer erro no processo, ele é avaliado como se não soubesse nada.

Será que é isso mesmo? Eu gostaria muito de saber a opinião de vocês. Alguém aqui é professor e faz algo parecido? Poderia justificar?

Um dia um amigo meu me falou o discurso de um professor que realiza essa prática ainda hoje na faculdade. E eu achei bem interessante até.

Eu faço isso com vocês deliberadamente. E mais, eu sei que essa prova que vocês fazem não avalia realmente se vocês sabem ou não a minha matéria (os procedimentos relacionados a cálculo de estruturas). A minha prova avalia muito mais outras capacidades, mais indiretas, que são pelo meu ponto de vista essenciais para o engenheiro.

Uma prova difícil com procedimentos de cálculo longos e correção rígida avalia dos alunos de engenharia a concentração, a memória, a capacidade de ser sistemático e preciso, de trabalhar sob pressão, contra o tempo, de se virar sozinho e descobrir rapidamente como resolver corretamente um problema difícil, entre outras coisas. E é para isso que eu preparo vocês e porque o mercado de trabalho tanto valoriza vocês como profissionais.

Acho muito nobre esse discurso, de verdade. Esse é um professor que respeito e admiro, apesar de discordar dele em vários pontos. Para não me alongar muito vou explorar dois pontos:
  • Se você quer ensinar certas habilidades, pense na melhor maneira de fazê-lo. Por exemplo, se eu quero ensinar concentração, eu preciso pensar nas técnicas existentes para isso, e avaliar qual é a melhor que posso aplicar em minha disciplina. E eu tenho que mostrar isso para os alunos desde o começo, para que eles saibam que avaliarei isso, não cálculos e contas. Concordo que uma correção de prova rígida avalia concentração, mas não acredito que seja a melhor forma de fazê-lo.
  • Seja humano. O estilo de professores assim é muito próximo ao de militares, homens indisponíveis e antipáticos que não se importam com as outras pessoas. Simplesmente fazem o que devem fazer e pronto, a vida é dura. Para mim educação de qualidade não combina com esse tipo de postura. Alunos podem ser preparados de maneira muito melhor para o furioso mercado de trabalho se bem atendidos e bem orientados, não por serem calejados de levarem porrada.
E aí? Concorda comigo? Esse é um assunto bem complicado, e acho que está na alma do ensino de engenharia há bastante tempo.

De qualquer forma, se você concorda comigo, como podemos fazer para que isso deixe de existir em nossas faculdades? Tenho medo dos novos professores, doutores formados nos últimos 10-15 anos, tenham essa mesma mentalidade...

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